Bem-estar animal e qualidade de carne. Qual a relação?

O bem-estar animal é um tema de crescente relevância na pecuária moderna. Além de ser uma questão ética, que reflete o respeito e a responsabilidade para com os animais, tem um impacto direto na qualidade do produto final.

No passado, o bem-estar dos bovinos não era um tópico amplamente discutido, e muitas práticas de manejo não consideravam os aspectos de conforto e saúde dos animais. Hoje, no entanto, estamos testemunhando uma transformação significativa. Diversas técnicas de manejo que priorizam o bem-estar animal estão sendo implementadas tanto dentro quanto fora da porteira.

Nas fazendas, práticas como o manejo racional, que evita o uso excessivo de instrumentos de contenção e minimiza o estresse dos animais, estão ganhando destaque. Fora das fazendas, no transporte e nas instalações de abate, estão sendo adotadas medidas para garantir que os animais sofram o mínimo possível durante o deslocamento e o processamento.

Programas de bem-estar na pecuária de corte também estão ajudando a padronizar e promover essas práticas. Esses programas oferecem diretrizes específicas sobre como manejar os animais de forma a garantir seu bem-estar, desde o nascimento até o abate, incluindo aspectos como alimentação, abrigo, saúde e comportamento.

À medida que o bem-estar animal ganha cada vez mais espaço, fica evidente que essas práticas não são apenas benéficas para os animais, mas também essenciais para a sustentabilidade do setor. Um bom manejo pode resultar em animais mais saudáveis e produtivos, além de melhorar a qualidade da carne, o que é um fator crucial para atender às demandas dos consumidores e mercados cada vez mais conscientes e exigentes.

Especialmente crucial é o manejo pré-abate, um período em que o estresse pode afetar significativamente as características da carne. Durante esse manejo, os animais são submetidos a várias situações que podem causar estresse, como o carregamento, o transporte, a chegada ao frigorífico, o descasque do lote, a reordenação de hierarquias dentro do lote, e o excesso de barulhos. Cada uma dessas situações, se não gerenciada corretamente, pode levar a um desgaste significativo do glicogênio muscular dos animais, impactando a qualidade final da carne.

Durante o carregamento, os animais são conduzidos para caminhões através de corredores e rampas, o que pode ser uma experiência desafiadora. É importante garantir que esses processos sejam realizados com calma e eficiência para minimizar o estresse. A utilização de técnicas de manejo adequadas pode ajudar a facilitar a movimentação dos animais de forma tranquila.

O transporte, por sua vez, deve ser realizado de maneira a garantir o conforto dos animais. Condições adequadas de espaço, ventilação e temperatura são fundamentais para manter o bem-estar dos bovinos durante a viagem. Pausas adequadas para descanso e hidratação também são essenciais para minimizar o estresse.

Na chegada ao frigorífico, é necessário que os animais sejam descarregados de maneira organizada e tranquila. Um ambiente controlado, com movimentação ordenada, ajuda a reduzir o impacto do novo ambiente. A familiarização com o local pode ser facilitada através de práticas de manejo cuidadosas.

O descasque do lote, ou a separação de grupos de animais, deve ser feita de maneira a causar o menor desconforto possível. Como os bovinos são animais sociais, é importante manejar essa separação de forma gradual e calma, evitando mudanças bruscas que possam gerar estresse.

A reordenação de hierarquias dentro do lote é um processo natural. No entanto, práticas de manejo que promovam interações sociais pacíficas podem ajudar a minimizar conflitos e estresse. Monitorar essas interações e intervir quando necessário é uma estratégia importante para manter o bem-estar.

O excesso de barulhos pode ser uma fonte de estresse, mas pode ser controlado através de práticas de manejo que reduzam ruídos excessivos. Equipamentos silenciosos e um ambiente calmo contribuem para um manejo mais tranquilo dos animais.

Em todas essas situações, é crucial minimizar o estresse para evitar a depleção das reservas de glicogênio dos animais.

Vamos entender melhor?

O glicogênio é uma forma de armazenamento de glicose nos músculos e no fígado dos animais, incluindo bovinos. Durante o período de pré-abate, quando os animais estão sujeitos às situações estressantes, como citamos acima, ocorre a liberação de hormônios do estresse, como o cortisol. Esses hormônios ativam processos metabólicos que levam à depleção das reservas de glicogênio nos músculos. O glicogênio é convertido em glicose para fornecer energia adicional ao animal em resposta ao estresse. No entanto, o consumo excessivo de glicogênio pode levar à sua redução significativa nos músculos.

A depleção das reservas de glicogênio nos músculos pode ter um impacto direto na produção de ácido lático após o abate. O ácido lático é produzido através da fermentação da glicose, e é responsável pela queda do pH da carne post mortem. Durante o processo de resfriamento da carne após o abate, o pH da carne deve cair para níveis ideais (5,3 – 5,8) para garantir sua qualidade e segurança. O ácido lático contribui para esse processo, criando um ambiente ácido que inibe o crescimento de microrganismos indesejáveis e ajuda a preservar a carne.

No entanto, quando as reservas de glicogênio nos músculos estão esgotadas devido ao estresse pré-abate, a produção de ácido lático pode ser comprometida. Isso pode resultar em uma queda insuficiente do pH da carne, levando a uma condição conhecida como carne DFD (do inglês Dark, Firm, and Dry). A carne DFD tem uma coloração mais escura do que o normal e uma textura mais firme, e pode apresentar um sabor e aroma alterados.

A cor da carne também está diretamente relacionada ao pH. Geralmente, a carne tem uma cor vermelha brilhante devido à presença de mioglobina, uma proteína que se liga ao oxigênio e dá à carne sua cor característica. Um pH mais baixo (mais ácido) favorece a formação de mioglobina oxigenada, que é vermelha. No entanto, em condições de pH mais elevado, como ocorre na carne DFD, a mioglobina pode se tornar mais estável na forma desnaturada, resultando em uma coloração mais escura.

Além disso, temos outro problema relacionado à falta de bem estar nas práticas de manejo: contusão de carcaça.

Essas contusões resultam de impactos físicos que ocorrem quando os animais colidem uns com os outros, com paredes de caminhões, cercas ou outros objetos. As lesões causadas por essas contusões são prejudiciais, não apenas pelo sofrimento que impõem aos animais, mas também pelo impacto econômico que causam aos produtores.

Lesões e contusões na carcaça podem levar à depreciação significativa do valor do produto final. Quando os animais chegam ao frigorífico com contusões visíveis, partes da carcaça podem precisar ser removidas, resultando em perda de peso e rendimento. Além disso, a presença de contusões pode afetar a classificação da carcaça, reduzindo ainda mais seu valor de mercado. Em muitos casos, os produtores são penalizados financeiramente por essas lesões, recebendo um preço menor por carcaças danificadas.

Para minimizar o risco de contusões, é crucial adotar práticas de manejo e transporte que priorizem o bem-estar animal. Felizmente, parte dos estabelecimentos e colaboradores tem acatado tais aprendizados.

Algumas sugestões práticas para evitar contusões durante o manejo e transporte dos bovinos são:

  1. Treinamento de Manipuladores: As pessoas que lidam com os animais devem ser bem treinadas em técnicas de manejo suave e eficiente. Isso inclui evitar o uso de instrumentos de choque e reduzir a gritaria, que pode assustar os animais e causar movimentos bruscos.
  2. Equipamentos Adequados: Utilizar equipamentos de contenção e transporte adequados que minimizem os riscos de colisão. Caminhões de transporte devem ter divisórias para evitar que os animais se movimentem excessivamente durante o transporte.
  3. Transporte Cuidadoso: Durante o transporte, é importante dirigir de maneira suave e evitar movimentos bruscos. Paradas e arrancadas devem ser feitas de forma controlada para reduzir o risco de colisões entre os animais.
  4. Espaço Suficiente: Garantir que os animais tenham espaço suficiente durante o transporte para se moverem confortavelmente, mas não tanto espaço que possam ganhar velocidade para colidir com força.
  5. Condições de Carga e Descarga: As rampas de carga e descarga devem ser projetadas para facilitar o movimento dos animais sem encorajá-los a correr ou pular. A inclinação das rampas deve ser suave, e as laterais devem ser protegidas para evitar quedas.
  6. Inspeção Regular: Realizar inspeções regulares dos equipamentos de transporte e contenção para garantir que estejam em boas condições e sem partes pontiagudas ou danificadas que possam causar lesões.

Portanto, implementar essas práticas pode ajudar a reduzir significativamente a incidência de contusões e lesões na carcaça, beneficiando tanto o bem-estar animal quanto a lucratividade dos produtores.

Por fim, o compromisso com o bem-estar animal não só beneficia diretamente a qualidade da carne, mas também promovem uma imagem positiva da pecuária junto aos consumidores, que cada vez mais valorizam práticas responsáveis e éticas na produção de alimentos.

 É um esforço conjunto que exige a participação de toda a cadeia produtiva, desde os produtores até os processadores e distribuidores. Através de práticas responsáveis e inovadoras, podemos garantir um futuro mais sustentável e ético para a pecuária, onde a qualidade e a integridade do produto final refletem o respeito e o cuidado dedicados aos animais em cada etapa de sua jornada.

Acreditamos que a Brazil Beef Quality pode desempenhar um papel crucial ao identificar pontos críticos e potenciais melhorias através da avaliação de carcaças. Nosso trabalho em medir fatores essenciais como pH, cor da carne e contusões de carcaça nos permite fornecer insights valiosos para aprimorar as práticas de manejo. Com essas avaliações detalhadas, ajudamos a alertar sobre áreas que necessitam de atenção, contribuindo para uma cadeia produtiva mais eficiente e um produto final de excelência.

Escrito por: Bianca Torin

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *